Carta aberta ao sr. primeiro-ministro no Dia Mundial do Teatro de 2023
Não quero crer que a Seiva Trupe tenha esperado meio século por um Governo de maioria absoluta socialista para ser morta por garrote financeiro.
Senhor primeiro-ministro
Não quero crer, nem, estou certo, que o queira V. Exa, que na História do Teatro Português, uma das suas mais importantes estruturas, cuja actividade começa num quadro de luta pela liberdade e pela democracia ainda antes do 25 de Abril, a Seiva Trupe, apareça liquidada no ano de 2023, quando completa 50 anos da sua fundação. Uma estrutura que, passado o período do pós-25 de Abril (em que foi sempre apoiada: de Palma Carlos a Vasco Gonçalves e deste a Pinheiro de Azevedo), atravessou, sem discussão sobre o apoio a conceder-lhe, os Governos de Mário Soares, com e sem o apoio do CDS e até no período de intervenção do FMI, os Governos de iniciativa presidencial, fosse com Mota Pinto ou com Lourdes Pintasilgo, os da AD, fosse liderado por Francisco Sá-Carneiro ou por Freitas do Amaral, os de Cavaco Silva, com ou sem maioria absoluta, os de António Guterres, os de Durão Barroso e Santana Lopes, os de José Sócrates, o de Passos Coelho com intervenção da troika e o de V. Exa, constituído pela chamada “geringonça”, tivesse de esperar meio século por um Governo de maioria absoluta socialista, liderado por V. Exa, para ser morta por garrote financeiro.
Acho-o tão absurdo, tão paradoxal e tão improvável, que prefiro acreditar que se tratou de um acto administrativo, sim, mas que, em política – como disse Mário Soares e muitos outros – tem de, em determinados casos, de ser corrigido por novo acto administrativo que o corrija. E muito embora, ache que em política a obstinação, num Governo não totalitário, se confunde com teimosia, até à data, mesmo quando truculentamente crítico, tive sempre o cuidado de dizer que essa “teimosia” do ministro da Cultura em nada fazer para o corrigir me espantava justamente por o ter por um homem esclarecido, inteligente e culto. Prefiro imaginar que é o desconhecimento do que é, de facto, este ícone da cidade do Porto, projectado e reconhecido nacional e internacionalmente. Faço fé de que se trata de uma infelicidade de quem se precipitou nas palavras e disse a única que nunca se diz em política, como V. Exa muito melhor do que eu sabe, que é justamente “nunca”. E como disse que “nunca mudaria o resultado dos Concursos da DGArtes” está hoje preso à armadilha que a si mesmo montou. Porém, tem ao seu alcance outros instrumentos, sem ter sequer de recuar. Entre muitos procedimentos, tem na mão soluções, a começar pelo Fundo de Fomento Cultural (mas sem neste se esgotar) passíveis de adoptar já, uma vez que nada terão a ver com o procedimento concursal em si e muito menos estão dependentes do desenvolvimento do recurso ao poder judicial, a que a Seiva Trupe se negou e também só tem a ver com os referidos concursos.
Situações flagrantemente graves – e abrangentemente assim reconhecidas, até junto do sr. ministro, pelas mais diversas personalidades e por petições de milhares e milhares de portugueses, principalmente portuenses – podem ser, assim, prontamente resolvidas. Como no caso histórico da Seiva Trupe e ou de A Barraca, e de outras estruturas, como por exemplo, no campo da coesão territorial, a Filandorra ou A Acta. Aceitemos que a decisão, precipitada ou mal avaliada, foi apenas uma falha. E não caiamos na tentação, de terríveis consequências no Mundo, de em nome de um igualitarismo primário esquecer o princípio de que o que é diferente diferentemente deve ser tratado.
De resto, de coração na mão, reconheço que a Seiva Trupe, e eu também na minha vida, muitas e muitas vezes errámos; e como tal o corrigimos, quando disso nos apercebemos e/ou nos deram a perceber. São flagrantes as alterações dinâmicas e reformistas nos últimos cinco anos, que a direcção artística empreendeu, a culminar na reconquista de um espaço próprio de residência, que a estrutura não tinha há quase nove anos, e onde logo em pouco mais de meio ano, logrou alcançar, em 16 sessões, uma mediana de 140 a 150 espectadores. E se erros – e muitas dificuldades – houve num passado recente, estes factos mostram à saciedade que se está no bom caminho com a “Política dos 3R: Respeitar o passado, Renovar no presente, Rumar ao futuro”, divisa e praxis adoptadas com toda a determinação, evidência e reconhecimento público. Por isso, esperamos, com a mesma singeleza, que o sr. ministro compreenda que, se errar é humano, corrigir o erro é sinal de elevação e – sobretudo em política, mais do que humildade democrática, que o é também – significa uma sublime prova de sagacidade cívica e ética cidadã.
Com todo o respeito que V. Exa e o sr. ministro da Cultura me merecem, aguardo, expectante, uma resposta, que, em termos práticos, salve a Seiva Trupe. Seja através do ministro da Cultura, seja de V. Exa, que sabe ser quem é o responsável último pelas marcas que, na própria cultura também, deixará fica na História.
Aguardo, expectante, uma resposta, que, em termos práticos, salve a Seiva Trupe
À disponibilidade, de quem seja, para um esclarecimento completo das minhas próprias afirmações, que não cabem numa carta destas, para elas me ofereço e aguardo com serenidade, mas imensa urgência.
Atentamente,
Castro Guedes, Encenador
Director Artístico da Seiva Trupe
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